terça-feira, 14 de novembro de 2017

Armazenados


O filme todo são apenas dois personagens dentro de um armazém. Calma, não desista assim tão fácil. "Almacenados" é um ótimo filme mexicano (aliás, o cinema mexicano é ótimo!) sobre como podem ser absurdas as relações de trabalho, relegando pessoas à obsolescência e mediocridade porque isso, de alguma forma, é útil aos patrões. É também sobre como as pessoas cedem a isso para se integrarem a uma sociedade onde ter um contrato de trabalho e um salário fixo é um luxo.
E no filme, se falta ação, sobram ótimos diálogos entre um homem velho, que está se aposentando, e outro jovem, que está assumindo o seu lugar, fechados das sete às quinze horas dentro de um armazém onde nada acontece. Por fim, o velho pergunta ao jovem por que quer aquele trabalho. Ele responde: "é como qualquer outro". De certa forma, em qualquer trabalho, estamos todos armazenados. O que ainda nos salva, e o filme mostra isso, é nossa capacidade de exercitarmos a compaixão e empatia pelos outros seres humanos.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Queremos governantes irascíveis

Para ser um governante, Platão defendia em sua obra A República que o sujeito deveria ter a formação anterior de guardião. Estes eram selecionados por apresentarem de forma destacada a parte irascível de sua alma (Platão dividia a alma em 3 partes: apetitiva, irascível e racional). Irascível é uma pessoa que se irrita com facilidade. Significa dizer que, para ser um bom governante, antes de mais nada era preciso ser um cara pavio curto, corajoso, em síntese um bom guerreiro. Tinha que saber brigar e gostar disso. Claro que depois se acrescentariam qualidades como a temperança, a racionalidade e a experiência. Mas não podia ser muito deboísta, como se diz hoje em dia.

Eu e o mundo

É interessante ver a imagem que o senso comum faz do filósofo hoje em dia, ou pelo menos de quem se dedica a pensar filosoficamente. Normalmente essas pessoas são vistas como alheias ao mundo, sem uma preocupação prática com a vida, o que difere totalmente da proposta original grega de filosofia. A ética aristotélica, por exemplo, tinha por base o desenvolvimento de virtudes individuais que credenciassem o cidadão a conviver de forma harmônica com os demais, na polis, buscando sempre o justo meio, uma espécie de meio-termo entre a falta e o excesso de paixão. Em outra palavra, a temperança, que é elemento fundamental para o bom convívio social. Mais prático que isso, impossível. No conceito de justiça, a maior de todas as virtudes para Aristóteles, o justo projeta-se mais para o outro do que para si mesmo. Lembra muito a nossa definição atual de empatia, ironicamente, algo que parece nos fazer muita falta.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Epitáfio

Hoje eu me peguei pensando que a gente nunca sabe a que horas vai dar no pé desse planetinha azul. Mas como é de costume, acabei me preocupando justamente com o detalhe de menor importância. Achei fundamental deixar um epitáfio pronto, por escrito e registrado aqui no blog, para que ninguém se faça de desentendido. Vai que eu junto os calcanhares hoje mesmo e aí vão ter que incumbir alguém desse trabalho sujo. E vai que o infeliz resolva cometer o equívoco de me homenagear, né? Então achei melhor antecipar as coisas e deixar tudo pronto, para evitar complicações posteriores. Sim, porque faço questão de um epitáfio. Não poderia sair de cena assim, no vazio. Então segue o dito cujo:

Aqui jaz um saco de ossos. Sim, porque eu já dei no pé faz tempo. Coisa mais sem graça é cemitério. Se ainda tivesse vista pro mar... 
Da vida levo alguns arranhões na alma e nenhum arrependimento. E se fiquei devendo alguma coisa, agora mesmo é que não vou pagar.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Questões de gênero



Eu me divertia muito com aqueles programas de namoro do Silvio Santos, principalmente quando ele perguntava ao candidato sobre seus relacionamentos anteriores, por que não tinham dado certo. A resposta quase sempre era a mesma.
− Incompatibilidade de "gêneros".
Então talvez fosse o caso da criatura tentar alguém do mesmo gênero, pensava eu.

***

Dia desses entrei no elevador com um cara que pesava mais ou menos uns 150 kg. Ele respirava com dificuldade e batia papo com um vigia fardado. Quando o gordinho desceu, alguns andares antes do térreo, o vigia comentou comigo:
− Agora tá assim, mas jogava muita bola.
Percebi que “jogar muita bola” é um atenuante para tudo. Certamente a qualidade mais valorizada em um homem quando analisado por outro homem. Ou talvez a única permitida.

***

O cartunista Laerte é um dos caras mais inteligentes e respeitáveis que eu conheço. Além de fazer tirinhas geniais, de uns anos pra cá ele resolveu extrapolar a sua feminilidade, vestindo-se literalmente de mulher. Mas o mais interessante disso é que, nessa história toda, a sua preferência sexual é o que menos importa, pois só diz respeito a ele mesmo. O que fica claro é que ele desafia as diferenças de gênero para ir mais além: para que as pessoas se perguntem por que as coisas são como são. É algo que deveríamos fazer o tempo todo e fazemos tão pouco. Assisti a uma entrevista em que ele chamava atenção para o fato dos homens serem mais rígidos nesse sentido. As mulheres usam cabelo curto e roupas masculinas desde o século passado, mas ver um homem vestido de mulher hoje em dia ainda é um choque tremendo.
Em tempo: Laerte usava um vestido curto na entrevista. E as suas pernas depiladas, olha, vou te contar...

domingo, 27 de janeiro de 2013

Boate Kiss, a dor de cada um


Dia desses eu estava na fossa e acabei escrevendo um poeminha que falava sobre a nossa incapacidade de sentir a dor dos outros. Era tão ruim que eu deletei. Mas era mais ou menos assim: “A dor do outro é protegida por arame farpado. Sofrimento é propriedade particular”. Sofrível é o poema, sim, eu sei. Mas pior que isso: ele não faz sentido. Ou deixou de fazer sentido quando chegou até mim a notícia da tragédia de Santa Maria, com mais de 230 mortos, trancados em uma boate. Muitos deles asfixiados pela fumaça. Alguns carbonizados. O sofrimento daquelas pessoas, de seus familiares, dos amigos, dos sobreviventes, dos bombeiros, do RS e do Brasil é hoje o meu sofrimento também. Coletivo, compartilhado, multiplicado.

Não me interessam na verdade os erros de cálculo ou de noção que motivaram a tragédia. A dor é maior que tudo. E eu me surpreendi com ela presa no meu peito. Tudo bem que eu tenha uma ligação com a cidade, pois vivi lá anos muito legais da minha vida. Tudo bem que eu me identifique de certa forma com aqueles jovens, pois já frequentei, como eles, locais parecidos. Estive exposto aos mesmos riscos. Mas por que, se não tenho parentes envolvidos na tragédia, ou amigos... por que ela me dói assim? Não tenho essa resposta e acho que nem é necessário tê-la. Talvez eu pense na minha filha, que felizmente dormia tranquila em seu quarto quando tudo aconteceu. Tem apenas seis anos. Gostaria que tivesse seis anos pelo resto da vida.

Investigando o que sinto, talvez eu encontre culpa. Culpa por fazer parte dessa humanidade que não trata mal apenas velhos e crianças. Que trata mal os seus jovens. Antigamente os enviava à guerra. Hoje os embebeda e coloca diante de um volante. Hoje os trancafia dentro de uma boate em chamas. Hoje os expõe a uma vida de incertezas, de violências das mais diversas proporções. Sim, como humano sou culpado. Falhei com eles. Por isso sofro por eles e com eles.

Mas, talvez, pensando bem, meu poema estivesse certo. Posso imaginar hoje o que sentem os familiares das vítimas, mas não chego nem perto de saber o que estão realmente sentindo. Não há como. Só desejo que possam sepultar os seus filhos e amigos em paz e que encontrem, em todos os próximos dias de suas vidas, alguma razão para que a dor seja, ao menos, minimizada. Porque não importa o que se faça ou o que aconteça, o fogo do teto da boate Kiss nunca vai se apagar. E para um pai, uma mãe, a falta que um filho faz é algo que só eles podem sentir e que ninguém poderá jamais entender ou explicar.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Fronteiras


O homem e o menino estão fugindo de uma guerra onde talvez nem tenham uma posição definida. Talvez nem sejam contra o regime de Bashar al-Assad, que impõe, com violência e morte, limites à liberdade de expressão. Dá para ver que sofrem. Mas esse texto não é sobre sofrimento. E nem sobre guerras. É sobre atravessar fronteiras. E o que é, enfim, uma fronteira? É algo físico, geográfico, visível, mas é muito mais.

O homem e o menino estão atravessando a fronteira entre a Síria e a Turquia. Há nos seus olhos uma certa ansiedade. Olham para algo que talvez ainda não conheçam. Uma terra vizinha, porém estranha. Algo novo e incerto, porque o antigo já é impensável. O que farão lá? Haverá trabalho, comida, condições de construir um lar? Isso pouco importa agora. Fogem, porque foi a alternativa que restou. E talvez só tenhamos realmente a coragem de atravessar quando algo nos empurra. Fronteiras são as referências da mudança.

Na Turquia, o menino será um homem. O homem, logo será um velho. Talvez até lá a Síria se pacifique. Talvez um regime desmorone e outro se levante. Jamais voltarão à velha Síria, esta será nova então. Se há expectativas para além da fronteira, também há naquilo que fica para trás dela. Há quem sonhe com um mundo sem fronteiras. No caso do homem e do menino, ainda bem que elas existem e que podem ser alcançadas.