Dia desses eu estava na fossa e acabei escrevendo um
poeminha que falava sobre a nossa incapacidade de sentir a dor dos outros. Era
tão ruim que eu deletei. Mas era mais ou menos assim: “A dor do outro é protegida
por arame farpado. Sofrimento é propriedade particular”. Sofrível é o poema,
sim, eu sei. Mas pior que isso: ele não faz sentido. Ou deixou de fazer sentido
quando chegou até mim a notícia da tragédia de Santa Maria, com mais de 230
mortos, trancados em uma boate. Muitos deles asfixiados pela fumaça. Alguns
carbonizados. O sofrimento daquelas pessoas, de seus familiares, dos amigos, dos
sobreviventes, dos bombeiros, do RS e do Brasil é hoje o meu sofrimento também.
Coletivo, compartilhado, multiplicado.
Não me interessam na verdade os erros de cálculo ou de noção
que motivaram a tragédia. A dor é maior que tudo. E eu me surpreendi com ela
presa no meu peito. Tudo bem que eu tenha uma ligação com a cidade, pois vivi
lá anos muito legais da minha vida. Tudo bem que eu me identifique de certa
forma com aqueles jovens, pois já frequentei, como eles, locais parecidos. Estive
exposto aos mesmos riscos. Mas por que, se não tenho parentes envolvidos na
tragédia, ou amigos... por que ela me dói assim? Não tenho essa resposta e acho
que nem é necessário tê-la. Talvez eu pense na minha filha, que felizmente
dormia tranquila em seu quarto quando tudo aconteceu. Tem apenas seis anos.
Gostaria que tivesse seis anos pelo resto da vida.
Investigando o que sinto, talvez eu encontre culpa. Culpa
por fazer parte dessa humanidade que não trata mal apenas velhos e crianças.
Que trata mal os seus jovens. Antigamente os enviava à guerra. Hoje os embebeda
e coloca diante de um volante. Hoje os trancafia dentro de uma boate em chamas.
Hoje os expõe a uma vida de incertezas, de violências das mais diversas
proporções. Sim, como humano sou culpado. Falhei com eles. Por isso sofro por
eles e com eles.
Mas, talvez, pensando bem, meu poema estivesse certo. Posso
imaginar hoje o que sentem os familiares das vítimas, mas não chego nem perto
de saber o que estão realmente sentindo. Não há como. Só desejo que possam
sepultar os seus filhos e amigos em paz e que encontrem, em todos os próximos
dias de suas vidas, alguma razão para que a dor seja, ao menos, minimizada.
Porque não importa o que se faça ou o que aconteça, o fogo do teto da boate
Kiss nunca vai se apagar. E para um pai, uma mãe, a falta que um filho faz
é algo que só eles podem sentir e que ninguém poderá jamais entender ou
explicar.