sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Falou e disse

A nossa língua portuguesa tem expressões pitorescas que renderiam uma boa conversa de bar. Cada uma com a sua utilidade. Tem aquelas que servem para dizer a mesma coisa, só que de um jeito diferente. Tem também as expressões muito úteis para aqueles que não querem dizer nada, ou seja, para quem só quer “chover no molhado”. “A priori” e “no âmago da questão” eram as preferidas de uma certa professora minha na faculdade. Ora, mas quem está interessado no que não está “no âmago da questão”? Melhor seria ir mesmo direto ao ponto para terminar logo aquela aula chata.

Mas a expressão que eu mais gosto, disparado, é essa: “e aí que eu me refiro”. Essa é imbatível. Embora gramaticalmente estranha (falta uma preposição ali, creio que o mais correto seria dizer "é a isso que eu me refiro", mas dessa forma perderia todo o seu encanto e a sua, com o perdão da redundância, expressão), tem o poder de encerrar qualquer conversa, qualquer discurso, porque chega justamente no ponto G do assunto em questão. Chegamos lá, não tem mais o que dizer. Tudo o que vem depois é supérfluo, o mais completo papo furado. Ouvi essa hoje no almoço. Depois disso, fez-se um silêncio retumbante no recinto.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Palco vazio


Foto: Clarice Pereira

Há exatamente três semanas, a essa hora estávamos a caminho de Cabo Frio-RJ. Eu, o sujeito aí da foto e mais vinte e poucos malucos que gostam de parar na frente da plateia e cantar. Durante a viagem, eu e este distinto colega acabamos dividindo o mesmo quarto da pousada e também o palco, como fizemos no fim dos anos 90 no Coral Unisinos e durante todo este ano de 2011 no Madrigal Presto. Foi um pouco preocupante ver a sua barriga e os pés inchados, a debilidade da doença, mas, ao mesmo tempo, foi empolgante ver a coragem, superação e disposição que demonstrou para estar ali apesar de tudo se posicionar contra isso. No fim do primeiro concerto em Cabo Frio, na noite de quinta-feira, chorou copiosamente. Sentia, talvez, que já não teria mais muitas oportunidades como aquela de fazer o que gostava, ao lado dos amigos que escolheu para passar uma parte importante do seu tempo.

A quem não o conheceu, não saberei descrevê-lo. Acho um erro encher uma pessoa de adjetivos pensando que assim vai poder dizer quem ela foi, ou é. Ele era simplesmente o Oscar. Até às 5 da manhã de hoje. Depois disso passou a ser uma voz que não cessará o seu canto em nosso pensamento. Uma imagem eterna, ao lado da ave de madeira, olhando para o além, quem sabe visualizando o que ainda não podemos ver.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Orlando

Hoje vou quebrar um silêncio de nove anos. Em julho de 2002 eu perdi o meu pai e desde então não consegui falar muito sobre o assunto. Mas hoje, não sei explicar a razão, deu vontade de dizer algumas coisas. Então lá vai.

Meu pai era um cara de voz forte. Sua simples presença (ele era grande não só para mim) já decretava uma certa autoridade. Uma autoridade doce, generosa, conciliadora e justa. Quando não conseguia conciliar e era desafiado de forma mal educada, simplesmente se calava e fechava a cara. Assim como fez nos últimos dias da doença. Doença mal educada. Ele se sentava em um sofá da garagem, com a cabeça entre as mãos, na companhia de um gato da vizinhança que o neto Tiago apelidou de Trovão. O mesmo Trovão que, no dia da morte do pai, andava de um lado para outro, miando sem parar. Para o Trovão o pai fora embora muito rápido, assim como para mim. Nem daria tempo de conhecer a minha filha, nascida quatro anos mais tarde.

Da infância eu tenho recortes visuais. Os passeios de carro pela cidade no domingo, sem nenhum destino certo. As idas à “granja” onde ele trabalhava, dias de grande adrenalina pra mim, um guri da cidade. A noite em que ele me tirou da cama para ver o cometa Halley. A madrugada em que ficamos acordados juntos para ver o Renato meter duas buchas e o Grêmio ser Campeão do Mundo. As pescarias noturnas, ele sempre com medo das cobras. As pegadinhas nos dias festivos, com presentes escondidos em lugares inatingíveis. As histórias de assombração que ele jurava ter visto.

Seu hobby preferido era fazer churrasco. De preferência em larga escala. Organizava o almoço da Festa da Colheita para mais de quinhentas pessoas. Muitas vezes se confundia com as palavras. Trocava “recinto” por “recipiente”, “embalo” por “embalagem”, “retrovisor” por “retransmissor”. Não era muito de demonstrar sentimentos. Só nos seus últimos tempos, em que ficava emotivo e começava a falar sem parar sobre a forma grotesca como fora tratado por meu avô durante a infância. Apanhava por não trabalhar o suficiente na lavoura, numa rotina de escravidão que durava desde o nascer do sol até o anoitecer. Até o dia em que fugiu de casa e se escondeu no mato para não apanhar mais.

Fico imaginando o que ele me diria hoje, se me visse. Provavelmente diria para eu andar na linha e parar de dar cabeçadas na parede (ele me conhece e sabe que faço isso). Mas, depois de passar pela reveladora experiência da morte, talvez ele apenas me dissesse para seguir meu coração, por mais que isso me custe. Sem sentimentalismos, claro, porque nós alemães não somos afeitos a isso. Pobres de nós. Ou talvez ele só me dissesse que a minha companhia lhe faz falta, como me faz a dele. Talvez. Porque se a vida é feita de incertezas, tanto mais é a morte.

Bom, essa é a história de um homem desconhecido. A minha história sobre ele. Ou pelo menos uma pequena parte da história. Porque sou um cara de poucas palavras e de textos sem fôlego. E nesse pequeno mundo que envolve a Rua Carlos Ernesto Knorr e a Granja Cipó, em Belizário, para mim, desde julho de 2002 e para sempre, haverá um silêncio imenso e ensurdecedor.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Deus é o caos

Dia desses, conversando com um grande amigo separado pela distância geográfica, mas reencontrado por “culpa” da tecnologia, eu revelava minhas angústias e anseios mais recentes. Nesse contexto de queixas, incertezas e sensações arrebatadoras, o amigo surgiu com a frase que julguei a mais simples e genial da última década: “a gente surfa no caos”. A imagem é bela e trágica ao mesmo tempo. E assusta. Principalmente porque me chamou à realidade de que o caos está em toda a parte, ao nosso redor, andando pelas ruas, flutuando no ar, sentado à mesa conosco, circulando pelos cômodos da casa, perturbando o sono.
Muitas vezes, na estabilidade (ou pseudo) da vida, em sua patética e efêmera organização que qualquer ventinho toca por terra, a gente não percebe que o caos está ali. Ou faz de conta que não o vê. Onipotente, onisciente, onipresente. Deus é o caos. E que bom que está ali. Porque nos obriga a ter coragem, nos arranca da covardia de viver com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar. Empurra-nos a fazer besteira e viver com muito mais perigo e delícia. E com muito mais dor (por que não?). Sentindo medo, sim, muito medo. E vergonha. E frustração. E encantamento. Tudo isso ao mesmo tempo, matéria da vida.
Então, viva o caos e toda a dor de barriga que ele provoca.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

É preciso regar

Este blog morreu algumas vezes. Como uma planta, pelo desinteresse do seu dono. Mas como fui um itinerante durante muito tempo na minha vida, deixei amigos espalhados. E tenho vontade de dizer a eles - e também aos amigos que ainda farei - como estou e o que penso, e o blog para isso se presta. Dizer que ainda não virei adubo, embora me encaminhe inapelavelmente para isso. Meus contos também querem ser lidos e querem dar sentido ao nome deste blog. O livro jamais publicado (as editoras são prudentes e sabem o que fazem), mas que quer viver, respirar, receber os comentários mais duros e os mais encantadores.
Aqui também há espaço para experiências diárias, impressões, para o ridículo da vida, este "espetáculo de som e fúria", segundo Shakespeare.
Então, fique à vontade. Atualizarei periodicamente, como deve ser. Para que a planta não morra de sede novamente.