quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Orlando

Hoje vou quebrar um silêncio de nove anos. Em julho de 2002 eu perdi o meu pai e desde então não consegui falar muito sobre o assunto. Mas hoje, não sei explicar a razão, deu vontade de dizer algumas coisas. Então lá vai.

Meu pai era um cara de voz forte. Sua simples presença (ele era grande não só para mim) já decretava uma certa autoridade. Uma autoridade doce, generosa, conciliadora e justa. Quando não conseguia conciliar e era desafiado de forma mal educada, simplesmente se calava e fechava a cara. Assim como fez nos últimos dias da doença. Doença mal educada. Ele se sentava em um sofá da garagem, com a cabeça entre as mãos, na companhia de um gato da vizinhança que o neto Tiago apelidou de Trovão. O mesmo Trovão que, no dia da morte do pai, andava de um lado para outro, miando sem parar. Para o Trovão o pai fora embora muito rápido, assim como para mim. Nem daria tempo de conhecer a minha filha, nascida quatro anos mais tarde.

Da infância eu tenho recortes visuais. Os passeios de carro pela cidade no domingo, sem nenhum destino certo. As idas à “granja” onde ele trabalhava, dias de grande adrenalina pra mim, um guri da cidade. A noite em que ele me tirou da cama para ver o cometa Halley. A madrugada em que ficamos acordados juntos para ver o Renato meter duas buchas e o Grêmio ser Campeão do Mundo. As pescarias noturnas, ele sempre com medo das cobras. As pegadinhas nos dias festivos, com presentes escondidos em lugares inatingíveis. As histórias de assombração que ele jurava ter visto.

Seu hobby preferido era fazer churrasco. De preferência em larga escala. Organizava o almoço da Festa da Colheita para mais de quinhentas pessoas. Muitas vezes se confundia com as palavras. Trocava “recinto” por “recipiente”, “embalo” por “embalagem”, “retrovisor” por “retransmissor”. Não era muito de demonstrar sentimentos. Só nos seus últimos tempos, em que ficava emotivo e começava a falar sem parar sobre a forma grotesca como fora tratado por meu avô durante a infância. Apanhava por não trabalhar o suficiente na lavoura, numa rotina de escravidão que durava desde o nascer do sol até o anoitecer. Até o dia em que fugiu de casa e se escondeu no mato para não apanhar mais.

Fico imaginando o que ele me diria hoje, se me visse. Provavelmente diria para eu andar na linha e parar de dar cabeçadas na parede (ele me conhece e sabe que faço isso). Mas, depois de passar pela reveladora experiência da morte, talvez ele apenas me dissesse para seguir meu coração, por mais que isso me custe. Sem sentimentalismos, claro, porque nós alemães não somos afeitos a isso. Pobres de nós. Ou talvez ele só me dissesse que a minha companhia lhe faz falta, como me faz a dele. Talvez. Porque se a vida é feita de incertezas, tanto mais é a morte.

Bom, essa é a história de um homem desconhecido. A minha história sobre ele. Ou pelo menos uma pequena parte da história. Porque sou um cara de poucas palavras e de textos sem fôlego. E nesse pequeno mundo que envolve a Rua Carlos Ernesto Knorr e a Granja Cipó, em Belizário, para mim, desde julho de 2002 e para sempre, haverá um silêncio imenso e ensurdecedor.

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